Cristina

20.7.07 |

Neo-bandeirantismo (idas de vindas de um viajante apaixonado pela diversidade)


Tanta gente passa por nós, e a gente nem aí. Gente que trabalha pra gente trabalhar... ou não... Segredos de São Paulo. Como os bastidores de uma grande peça de teatro...

“Sabe, eu não sei qual é o problema dessas máquinas, mas são tão burrinhas de vez em quando... Acredita que por vezes o trem não quer parar na estação? É! Ele vai parando devagarzinho e quando chega na entrada do túnel ele acelera e quer ir embora!”. Um sorriso lindo tinha na face. Cristina se aproxima da casa dos 30 anos, estatura mediana, olhos claros, cabelos loiros, longos e cacheados; e ostenta um pequeno brilhante na sua aliança na mão esquerda. Ela é maquinista da Linha Azul do Metrô-SP, a maior e mais movimentada linha. Começou a trabalhar há dois meses, depois de três treinando dia e noite, observando maquinistas mais experientes.

Cristina gosta do que faz. Diz que é muito bom se sentir útil para milhares de pessoas que usam o sistema metroviário. Sente uma grande alegria quando consegue fazer uma viagem sem transtornos, os quais são freqüentes na maioria dos casos.

Passei uns vinte minutos com ela. Ouvindo atentamente a tudo o que me dizia, desde o funcionamento do trem até “histórias nos trilhos”, que não são poucas. Ela arrumou uma banqueta para eu sentar ao lado dela. Uma banqueta até que confortável, estofada de couro sintético.

Durante esse tempo, ela me mostrou com uma didática incrível os comandos do trem (já até posso roubar um trem, vamos nessa? rs) Tudo é fascinante. Mas a simpatia dela foi mais do que tudo.

Simpatia essa que não nos pode ser passada. “As mensagens dadas aos usuários tem que ser padrão. Nenhum maquinista pode personalizar a sua.” me contou com um certo desapontamento no olhar. Todas esses avisos devem ser dados, rigorosamente, de acordo com uma planilha afixada no painel. Mas confesso que enquanto conversávamos, as mensagens foram deixadas de lado.

Mas nem de mensagens aos passageiros consiste o trabalho do maquinista. Ele tem que controlar o embarque/desembarque de passageiros pelo espelho ou câmera da estação, e tomar cuidado (e muito) para que os acidentes não aconteçam com tanta freqüência. Além das falhas que o trem apresenta - como não querer parar nas estações (o máximo isso, não é mesmo?); têm também os problemas antropológicos: dos acidentes, como cair na linha ou deixar cair algum objeto nela; aos casos de suicídio, que não são raros. Por essa razão, quando chegávamos a uma estação ela logo posicionava sua mão na alavanca de freio de emergência. Atenção para evitar traumas. Traumas como de seu colega Valdir.

Valdir é um outro maquinista, casa dos quarenta anos, que hoje ainda lembra da moça que perdeu a vida ao cair na frente de seu trem. O choque não passou. E ele não é o único. “Têm alguns que nunca mais voltam à ativa”.

Nem um descanso. Pelo menos por cinco viagens (ida e volta) na linha. Só depois disso, têm-se um break de alguns minutos. Caso contrário, é sair de um trem, no ponto final e pegar outro. Há todo um ritual pra isso, que inclui mudança de inúmeras chaves, retirada de manivelas e outras coisas. Um ritual que só eles sabem fazer. Acho que é pra manter um clima de mistério.

Outro clima de mistério é o Centro de Controle. Uma grande sala, com grandes telões cheios de pontos piscando e correndo em linhas paralelas... com algumas pessoas sentadas em computadores apertando freneticamente botões. Distante e num patamar superior a elas, um japonês, o sr. Osama (presumo – permito que você escolha um nome para ele), que não apertava nada. Nem fazia nada. Mas conversava com um outro operador. Supus que ele era o chefe. Será que foi preconceito meu?

No fim de tudo “desço na Luz” e ela me pergunta se eu não quereria ir com ela até o outro ponto final. Digo que não, que precisava mesmo ir. Precisava mesmo. “Então vai lá, que eu seguro aqui a porta pra você.” mais um sorriso. Sai da cabina. Acenei pra ela quando estava na plataforma e peguei a próxima escada rolante... facilitam tanto a vida. E o trem se foi pelo túnel... como sempre o faz.

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D. Alzira, nossa participante do blog, censurou uma parte do texto, por que ela acha que foi mentira da Cristina quando disse que as pessoas usam o freio de emergência para que o trem pare próximo da escada rolante da estação. D. Alzira acha que isso foi pessoal, e que ela tem o direito de fazer o que quiser por que é amiga da primeira-dama. Ah! E D. Alzira achou o texto um pouco grande e pede desculpas por mim...

Toninha

9.7.07 |

Neo-bandeirantismo (idas de vindas de um viajante apaixonado pela diversidade)

Ela tem um pouco mais de 1,5 m de altura e pesa cerca de 65kg. Em seu guarda-roupa existem cerca de dez vestidos, no entanto ela usa apenas dois – segundo ela, os outros são pra atividades festivas (as quais dificilmente ocorrem). Não usa sapatos em hipótese alguma. Seu nome é Maria Antônia, conhecida pelo povo de Cachoeira de Cima (interior de São Paulo) como Toninha.

Ela é um exemplo entre tantos estereótipos que encontramos por esse Brasil afora. Toda vez que me encontro com ela, ela abre um sorriso enorme (mostrando alguns dentes faltando em sua prótese dentária) e grita pra mim. Ela não sabe meu nome e tem problemas em falar e ouvir. Mas gosto dela e de seu jeito simpático de ser. Foram raras as vezes em que a vi sem o lenço encardido na cabeça. Segundo uma amiga dela, ela não sai de casa sem o lenço. Nunca o lava. E gosta de arruma-lo sempre que fica incomodada ou nervosa. Toninha tem 87 anos muito bem vividos. Seu príncipe encantando nunca chegou, apesar das más línguas dizerem que lá pelos seus 72 anos tenha tido um caso com um bóia-fria da região, o Cássio. Até então: ela é casta.

Cássio trabalhou na principal fazenda da região por cerca de 20 anos, conseguiu se aposentar e hoje vive num asilo na cidade vizinha. Ganha um salário mínimo assim como Toninha. O asilo fica com 85% do salário, o restante dá para ele gastar no que quiser. Passa as tardes a beber uma única dose de pinga, preparando seu fumo e contando histórias para outras tantas pessoas que tem histórias de vida semelhantes. As histórias nunca são contadas da mesma forma. Daí a graça em contá-las e ouví-las.

Toninha apesar de se alimentar de uma maneira não muito adequada e não portar hábitos de higiene muito rígidos, nunca foi a um hospital por problemas graves. Não tem triglicérides ou colesterol. É lúcida como uma jovem de 20 anos. E vive numa casa construída há mais de um século (com alguns reparos no telhado, devido as chuvas torrenciais que vêm ocorrendo na região). Varre sua casa todos os dias pela manhã (as 5 da manhã pra ser exato). Tem um colchão com algumas dezenas de anos no qual, segundo ela, “dorme muito bem”.

Todos os dias, Toninha sai pra passear pela redondeza. Passa o dia fora de casa, e aonde ela vai é recebida com alegria pelos moradores que lhe oferecem comida. Há alguns anos atrás era capaz de cozinhar sozinha, mas agora com sua visão piorando não pode mais. Come arroz, feijão, farinha salada e quando lhe oferecem ovo ou carne. Nos dias de festa toma refrigerante Bacana, “de guaraná por que é mais gostoso”. Volta a noite pra dormir. Toninha não toma banho com freqüência, sua mãe lhe ensinou que tomar muito banho faz mal a saúde... (idade média brasileira? rs) mas os pés são lavados. Afinal, anda mais de 3km por dia, descalça.

Na primeira vez que a encontrei, meu pai achou nela uma felicidade transparente. Todos acharam. Sua simplicidade mostrava o quanto era feliz. Meu pai na época resolveu lhe comprar um sapato. Todos o avisaram “Ela não vai usar... anda assim há 80 anos... nunca aconteceu nada...” Dito e feito. Ele comprou e deu a ela. Ao que ela respondeu “Ah... brigada... sapato? Bonito. Mas eu não vou usar. Esquenta meu pé” E ela nunca o usou.

Todo início de mês o seu procurador (um fazendeiro da região) vai ao banco sacar o seu salário. Se ela recebe devidamente o que o governo paga para ela de fato ninguém nunca se atreveu a perguntar. Mas ela recebe um dinheiro. Não gasta mesmo...

Até alguns anos atrás, morava com seu irmão Zé Maria, que morreu dormindo. Um sujeito tão simpático quanto ela. Nunca teve mulher, não deixou legado.

Toninha é uma das pessoas mais bonitas que já conheci. Bonita por seu jeito de ser, de se vestir e de se perfumar para ir a igreja aos domingos (quando a igreja está aberta e o dia está bonito) ou a alguma quermesse quando tem. Ela é feliz por ser. E ponto final.

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D. Arlinda, nossa participante do blog, não gostou do texto. Achou ele ridículo. Acredita que o texto ficaria melhor se fosse de alguém importante... disse pra ela que o Renan Calheiros não queria me dar entrevista... mas ela insistiu... e me chamou de idiota "Renan? Ele não é importante! Por que vc não perguntou para o Fábio Assunção? Hein?". É, a vida é mesmo um Paraíso Tropical pra algumas pessoas...