da quebra do silêncio numa noite fria

6.5.08 |

Todos os dias, das seis da manhã às oito da noite, quando se passa em frente ao Largo de São Francisco, no centro velho de São Paulo; olhando-se com mais atenção, vê-se um senhor de boné branco, bigodes pretos, baixo, um pouco gordo e de óculos de armação preta tocando um violão em frente a igreja do largo.
O senhor Aristides Nogueira, 65, já foi rico, dono de terras e de mulheres nas terras do sem fim (não nas de Jorge Amado, mais ao centro-oeste dos anos 70). Hoje tudo que tem se resume ao violão, a uma mala que o acompanha e ao guarda-sol que foi gentilmente doado por uma das beatas da igreja – a dona Júlia, 78.
Passa o dia tocando as músicas ecumênicas, que ao seu ver são muito mais decentes do que as tocadas em dias de festa pelos estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo – gigante, centenária e imponente, que sita ao lado da igreja. Pára para almoçar entre a uma da tarde e as duas e trinta, geralmente a comida é trazida por uma outra beata devota do santo que dá nome ao largo. Prefere a carne de frango à bovina; e macarrão à arroz. Mas come o que se tiver.
Junto ao largo, também se encontra a dona Maria da Conceição, 32; senhor Carlos Henrique (Carlão da latinha – não sei se ao hábito, ou a atividade profissional), 28; e dona Francislei Nogueira, 72. Trata-se, esta, da ex-mulher do senhor Aristides. Apesar de morarem um ao lado do outro (cerca de vinte metros), não se falam há 21 anos. Ela recolhe papelão e metal. Ele toca violão e sobrevive graças às ajudas de beneméritas que apreciam enormemente as suas canções.
Há umas semanas, a dona Maria da Conceição passou mal. Alguns franciscanos chamaram o resgate do orelhão perto da igreja. Foi socorrida há tempo, passou uns dias na Santa Casa; e retornou ao largo. Quando voltava do hospital numa noite fria, na ambulância, pensou que no outro dia teria que recolher mais papelão e latinha, se quisesse comer. Mas quando chegou, achou o senhor Aristides a esperando com um pedaço de pão na mão e um prato de macarrão com frango na outra. Sorriu, ofereceu a ela e disse:
- Vem cá, nega! Me perdoa, que eu não quero mais viver sem você.
Tive a impressão de que os sinos da igreja soaram diferentemente, as pombas voaram como num balé, o largo adormeceu mais feliz naquele dia.

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Só uma observação do sr. Alcides de Oliveira: os carros e os pedestres nunca notaram os personagens acima descritos.
D. Alzira se defende e diz que não freqüenta esse lado da cidade. Prefere a Paulista.
Eu digo? Não digo nada. Aliás, agradeço a todos os que andam bisbilhotando (mesmo os que não comentam) o sedex. E admito (ao meu caro amigo João): quando se sofre de amor, a escrita sai melhor! ;)