O tempo e o espelho

8.4.08 |

Um dia você acorda. Está chovendo. Demora um tempo pra se levantar da cama do hotel barato que está hospedado. Vai até o banheiro de azulejos caídos e tenta se olhar no espelho embolorado.
O tempo é como um ser humano. Alguém que tem nome, pais, poder, vida própria. Que se controla e controla muitas outras coisas. No entanto, quando você se olha no espelho sob aquela luz fraca de hotel de beira de estrada você não vê o tempo como alguém com um nome ou uma biografia; você o vê aquém dessa interpretação. Você não é capaz de compreendê-lo.
Você já não tem mais seus vinte anos, sua pele está fortemente enrugada, ostenta grandes marcas de noites mal dormidas embaixo dos olhos profundos. Nem mesmo o azul dos olhos é tão nítido como o era anos atrás.
Para um assassino profissional, apenas a primeira morte é crime. É imoral. Atormenta os sonhos, os momentos de êxtase sexual. Depois de três ou quatro serviços é plenamente possível entender que aquele é o seu trabalho. E que você tem um horário, pagamentos, uma vida em sí. Mas o primeiro trabalho sempre volta a memória. Os outros não: são esquecidos, como casualidades, como projetos de uma grande empresa.
A memória do meu primeiro assassinato me assombra em dias de chuva, em especial. Sempre acordo no meio da noite, vou ao banheiro e fico longos minutos me olhando, observando o que já se passou comigo desde o momento em que conheci aquela garota, que me hipnotizou e me levou a uma vida completamente diferente daquela sonhadas pelos pais que me prepararam festas de infância com temas da Disney.
Naquele instante, naquele lugar assombroso (talvez, muito mais pela minha presença do que pela própria arquitetura) eu ainda me olhava no espelho. Como sempre. O pesadelo me acordara e por mais que tentasse esquecê-lo logo, não conseguia.
As mãos também. As mãos tremiam. Tinham marcas do tempo. O dedo que puxava o gatilho ou a mão que segurava a faca. Tudo tem um significado diferente com o tempo. Em especial quando você define o tempo de viver das pessoas. Você passa a ver o seu corpo como uma máquina de matar: o cérebro atento para todas as possíveis situações de risco; o olhar frio, para não incitar misericórdia; as mãos ágeis; as pernas velozes; o ouvido atento.
Na noite anterior, umas duzentas milhas daquele hotel que estava, cumprira mais uma tarefa. Mas dessa vez não usei o indicador para puxar o gatilho, ou da força para dar um rumo à faca. Algumas gotas de um composto químico na água daquele velho. E pronto. Mais alguns dólares tinha ganhado. Mais alguns herdeiros felizes.
E por vezes me questiono: quem seria menos desumano? Eu, o executor que o tempo transformou nesse homem que lhes escreve; ou os mandantes? Filhos de milionários que anseiam pela herança dos pais que lhes faziam festas bem melhores do que as minhas quando crianças?Melhor seja deixar esse espelho. Tomar um copo d´água. Voltar à cama e ouvir as gotas da chuva baterem no telhado. Afinal, cada um tem uma parte na vida: uns fazem o que os outros pagam para ser feito, pensando que podem controlar a tudo; enquanto, na real, o tempo nos controla a todo instante, e nós nem percebemos isso... até que um dia, você acorda e vai até o espelho... O tempo o cumprimenta.

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O sr. Alcides de Oliveira ficou encantado com os cumprimentos dados por vocês ao texto último publicado. D. Alzira manda um beijo a todos e promete trazer lembranças da Cidade Luz para os mais achegados (não sei se receberei... estivemos brigando uns tempos atrás...). Eu dou uma pincelada na escrita, paro algum tempo na frente do computador e atualizo. Se é bom ou não, não o sei (na verdade, sei: não é dos melhores e tem uma grande chance de ser dos piores). Mas sei que dá pra viajar: sim! Deixar-me-ei ser procurado pelos textos, afinal não somos nós que escolhemos os textos, mas sim eles à nós.