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13.10.09 |

Descompensada ela era. O termo cai muito bem pela sonoridade da oração: articulando-se bem os lábios e sentindo a curva que a língua faz para pronunciar. Tinha arrumado todas as minhas coisas em uma mala empoeirada e deixou com o porteiro – juntamente com um bilhete que reduziu a duas linhas pensamentos de um casamento de vinte e um anos e um dia: “Foda-se com todas as ênclises possíveis! E mesóclises!”. Peguei o que me foi dado e sai, deixando ao advogado da empresa a nobre e árdua tarefa de se relacionar com aquela que eu um dia procurei para comigo viver.

Talvez mais árduas tenham sido as minhas semanas que se sucederam. Senti uma falta inimaginável dela e de seu sorriso entreaberto nas manhãs de sábado (fazíamos amor religiosamente por vinte e dois minutos às sextas), e ainda mais dos ovos mexidos – fruto de uma viagem às terras americanas nos idos dos anos oitenta.

Foi nessa década também que nos conhecemos e tivemos nosso primeiro e único filho – Pedro. Lembro-me que sai correndo pelas ruas da cidade gritando “É um menino! É um menino!”, ao que as pessoas me olhavam com espanto e piedade. Lembro ainda mais quando ele me contou que não gostava de ser menino: dessa vez eu não sai gritando, e a cara de espanto foi minha.

Alguns meses depois, o divórcio foi consumado, e remexendo nos papéis – como fazem as pessoas de velhos hábitos – encontrei o tal bilhete, um pouco amassado e exalando a ódio. Li e reli mais uma vez de modo que eu encontrasse a razão da tal mensagem. Foram vinte e um anos e um dia (sim, no dia anterior – como todos os anos – fomos jantar e fizemos o amor ritual) e apenas o que me dizia remetia à ênclises e próclises. Gostava sim das figuras, quem não gosta de ouvir um “dar-te-ei” bem colocado? ou um “interessa-lhe?”? No dia seguinte, comentei com meu novo amor – desses que a gente encontra por aí afim de uma sacramental troca de vantagens: “entende?”, ao que me respondeu que não, que não sabia nem quê “porra que é essa mesócrisi”. Contentei-me com a resposta – já era muito ela ter o sexo que aparentava e a boa vontade de me proporcionar mais do que vinte e dois minutos de prazer às sextas.

Por um acaso, e o destino é cheio deles, encontrei com a mulher dos vinte e um anos e um dia no mercado. Ela comprava alface hidropônica no mercado que eu procurava pela rúcula orgânica. Sorri, ela esboçou algum tipo disso, fugiu com o olhar e logo voltou – como um dever moral: “bem?”, retribui e emendei “que tem a ênclise?”. Sorriu um pouco mais, disse que não sabia muito bem e que precisava ir – a alface poderia murchar com mais trinta segundos de conversa.

No almoço, preparado por mim, quando o Pedro conversava com minha companheira sobre qualquer dessas coisas que mulheres conversam , finalmente – mais uma do destino – tinha compreendido: ela só disse pra enfatizar o grande desejo que tinha de me ver fodido. Sim, e nisso, a descompensada tinha ponderado bastante: o “se foda” era muito pouco. Era para casaizinhos de vinte dias.
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Devo mais uma vez agradecer vc que veio me visitar e comentou no último post, fiquei realmente feliz com as notas e com a repercussão! Não deixem de me falar sobre este também!
Desta vez, envio-lhes um texto bonitinho - como prometido; desses que tem um tanto de açúcar e de sal.