despropósito

4.7.09 |

Virou filósofo de boteco. Sim, virou! Desses que qualquer um encontra por aí – um daqueles! – ao final de uma noite de muita bebedeira. Tinha um nome e um olhar estranhos, e por isso, mesmo ao dar os seus discursos, não dizia nunca a sua alcunha e muito menos olhava diretamente para aqueles que ainda o ouviam – por caridade ou falta de escolha.

Deve ser mais ou menos assim: tudo a eles, nada a mim. Disparava sempre essa “máxima” (geralmente depois da décima segunda ou décima quarta dose) às garotas que se apoiavam no balcão – sim, as que sobravam! (ou por serem muito feias ou por serem muito difíceis).

Pra ser sincero, eu que já encontrara com ele umas quinze vezes só naquele ano pelos bares que passo (mas sem discursos ou filosofias próprias) nunca entendi o que ele queria dizer. Mas em um dia ( e observe que neste caso me referia a uma noite – sem qualquer tipo de descrição ou característica, como fariam escritores com crises sentimentais) ao ouvir a tal expressão, encasquetei-me e fui ter com ele:

- O senhor me desculpe, mas qual sua graça? – a “graça” me soava melhor nesses encontros furtivos com gente desconhecida e de uma idade razoável.

- Não se incomode. Todo mundo esquece. Até eu! – mais um gole

- Não entendo isso que fala – parei por um instante e observei que ele franzia a testa – Essa história de tudo a eles e nada a mim. Quê isso?

Ele ficou pensando por um instante. Talvez breve, mas a mim, pareceu bastante longo, tal era minha aflição em obter uma explicação daquele Sócrates contemporâneo. Mais um gole e respondeu:

- Faz muito tempo que eu falo isso?

Pensei que talvez ele já não soubesse mais o que falava, mas resolvi continuar.

- Eu o vejo com certa freqüência - talvez por causa do acaso ou de nossa preferência por determinados bares.
E, desde que me lembre de ouvi-lo pela primeira vez, o senhor sempre se referiu a tal expressão – (o caro leitor que me acompanha pode achar demasiado formalismo presente na conversa, mas somos simplesmente assim – mesmo fedendo a álcool)

Mais um gole.

- As coisas mudam – disse ele com um olhar de compaixão por mim ao perceber que continuava com a dúvida em minha cabeça – A cada vez que digo isso me refiro a alguma coisa, então, nunca sei dizer a quê exatamente estava me referindo, e se estava me referindo a alguma coisa.

Esperei que ele continuasse, mas ele se virou para o seu copo e continuo lá parado, observando a espuma da bebida ir se dissolvendo no líquido amarelo. Procurei respeitar o seu silêncio e voltei pra minha mesa, onde sentava com alguns colegas da repartição, e apreciei aquele happy hour tão habitual.

Porém, quando já ia embora, olhei de soslaio para o homem – que ainda discursava para uma moça (dessas que são fáceis...) – ao que ele me retribui com um aceno: venha cá. Sussurou-me, então: ”É um despropósito procurar sentido em tudo”.

Fui embora daquele bar com um sorriso miúdo no rosto. Talvez fosse aquilo e apenas aquilo. As coisas mudam e por isso não valesse a pena procurar uma razão em tudo. Um despropósito.

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isso me pareceu exatamente assim: algum lugar, um alguém e um monólogo. mas me saiu exatamente desse jeito que acabara de ler. talvez, as pessoas se confundissem e o lugar e a conversa co-incidissem de uma maneira ítima e pesada.

6 escrevinhanças:

Arthur disse...

e não é que o bêbado tá certo? parar de estressar tentando ler nas entrelinhas de tudo é evoluir! só falta EU sacar isso.
post legal, meu!

Mary disse...

Desproposito pode até ser. Mas ainda teimo em procurar sentido nas coisas. E como dá trabalho essa teimosia.

Anônimo disse...

Sim, sim. As vezes não existe sentido. Como a Blueberry pie, Não há nada de errado com ela, apenas ninguém a quer. Você não pode culpar a blueberry pie, as pessoas apenas fazem escolhas. Devemos respeitá-las.

Patricia disse...

ah que bonito isso! Vai ver o bêbado (que é um daqueles!) tem razão mesmo, e assim como o arthur eu também sempre quero achar um sentido pra cada mínimo detalhe e saber o pq das coisas, e pq nem tudo da certo e tal.... vai ver a realidade não tem tantas metáforas lindas e maravilhosas pra nós desvendarmos.... ai ai... beijo jow!

Renato Alt disse...

Perfeito, cara.
A vida seria um marasmo se tudo fizesse sentido...

Prefiro-a assim: indefinida, indefinível.

Abração.

Paula. disse...

gostei muito do final. de fato, essa mania de racionalizar tudo... para que, né? existem tantas coisas nesse mundo que simplesmente são. e ponto. Vc vai ver que é tudo um mecanismo de defesa do ego, rs (aulas de psicologia forense mudam a nossa vida, acredite!). e particularmente gosto mto de narrativas em primeira pessoa!
beijos!